domingo, 23 de março de 2008

O milagre dos peixes, azeitado pelos euros

Tudo começou com uma piada de português: "Vamos dar um pulo ali nas Índias para buscar uns temperos". E acabou com um império, formado por mais de 245 milhões de pessoas - contando a coroa, Portugal, e as ex-colônias Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Timor Leste e Macau. Hoje, o português é a quinta língua mais falada no mundo, logo atrás do inglês, e à frente do japonês, alemão e francês. Fruto dessa miscigenação, a literatura lusófona já foi mais longe do que a família real. Traduzida em centenas de países, vende mais do que bacalhau na Semana Santa. No Brasil, o reflexo desta expansão é o próprio milagre da multiplicação: em 2002, foram lançados seis livros de países lusófonos; em 2004, 48 títulos; em 2007, foram 57. Para este ano, as editoras já divulgam novos títulos.
A nau à frente desta invasão já aporta por aqui: o grupo editorial Leya, composto por oito editoras portuguesas, uma moçambicana e uma angolana, articula a compra de editoras no Brasil - a primeira seria a gigante paulista Companhia das Letras - e a transferência da sede para cá. Do conglomerado, do qual fazem parte as editoras Asa, Caminho, Gailivro, Nova Gaia, Nzila, Ndjira e Texto Editores, a principal é a Dom Quixote. Ex-braço espanhol em Portugal, a Dom Quixote foi vendida pelo grupo Planeta por cerca de 80 milhões de euros ao novo grupo português. Ou seja: segura, que é badejo!
Na nova onda, a primeira editora portuguesa chegou em 2006. Especializada na área jurídica, a Almedina abriu uma filial - junto com uma livraria - nos Jardins, em São Paulo. O sucesso é tanto que a empresa pretende expandir o catálogo para o gênero de ficção.
- Há muito tempo grupos portugueses tentam entrar no Brasil, mas sem sucesso. Acredito que este movimento agora tenha aumentado pela estabilidade da economia do país, e um melhor entendimento sobre o mercado brasileiro - avalia o administrador da Almedina, o português Diogo Bethencourt.
Lusófonos na Flip
Nas livrarias brasileiras, é muito mais fácil encontrar um livro de escritor português que de um amazonense. Caso do angolano José Eduardo Agualusa. Íntimo do círculo literário tupiniquim, Agualusa já participou de duas edições da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Em uma delas, a de 2004, decidiu abrir, com uma sócia portuguesa, Conceição Lopes, e uma brasileira, Fátima Otero, uma editora no Brasil exclusiva para livros em português - e assim nasceu a Língua Geral.

- Queríamos fazer uma editora com um perfil diferente, porque percebemos a demanda: nos anos 70, houve um boom de interesse entre os países, o fenômeno Camilo Castello Branco, de lá, e Jorge Amado, de cá. Mas depois o interesse morreu - comenta Conceição Lopes, sócia da editora. - O volume de originais não pára de chegar. A gente quer fazer uma família de autores novos, mesmo que eles não vendam bem o primeiro livro. O objetivo é investir no autor, não especificamente no seu primeiro livro.
As próximas apostas da Língua Geral já estão na lista de convidados da Flip deste ano: o escritor angolano Pepetela (já lançado no Brasil pela Nova Fronteira), o timorense Luiz Cardoso, o brasileiro Nelson Oliveira e o português Francisco José Viegas (que possui livros no catálogo da Record).
O movimento se reflete também nos prêmios literários: na última edição do (não por acaso) Portugal Telecom de Literatura, quem levou o troféu foi o escritor português nascido em Angola, Gonçalo M. Tavares, de 38 anos. Elogiado por José Saramago e Enrique Vila-Matas, Gonçalo é o principal representante do movimento. Prolífico, de 2001 até hoje, já lançou 16 livros. Todos foram publicados no Brasil.
Uma política cultural forte
Para tanto sucesso, há uma explicação: a forte política cultural. Desde 2002, o Ministério da Cultura de Portugal oferece uma espécie de subsídio a editoras que queiram publicar escritores contemporâneos lusófonos, na área de ficção, poesia e ensaio. A bolsa pode chegar até a 60% dos custo de impressão da obra, o que barateia bastante a edição. Alguns editores nacionais revelam que os livros podem até sair de graça. Sem custos com revisor ou produção editorial, a obra sai aqui exatamente como em Portugal.

O Programa de Apoio à Edição de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB) banca ainda os gastos do escritor com viagens para a divulgação dos livros e participação em feiras e festivais literários.
- O panorama das livrarias brasileiras mudou radicalmente, e os títulos portugueses contemporâneos, para além dos autores clássicos, são atualmente facilmente encontrados - comemorou a ministra da Cultura de Portugal, Izabel Pires de Lima, na última edição da Bienal de São Paulo. - Percebemos que a exportação de livros portugueses para o Brasil era ineficaz porque os custos da operação aumentavam muito o preço final para o público brasileiro.
Diretora do programa de divulgação da literatura portuguesa, a socióloga Ana Castro analisa o perfil dos escritores beneficiados:
- São jovens, portugueses e iniciantes. As inscrições aumentam ano a ano, há um verdadeiro interesse em publicá-los.

Fonte: Jornal do Brasil, 15/03/2008

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