terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fordlândia

Fordlândia do Brasil

Livro conta como o empresário americano Henry Ford fundou duas modernas cidades em plena Amazônia no início do século passado

Natália Rangel
Entusiasmado pelo sucesso de sua indústria automobilística que ia de vento em popa no início do século XX e decidido a escapar do alto preço do látex comercializado pela Inglaterra, o empresário americano Henry Ford decidiu plantar seringueiras na Floresta Amazônica e de lá extrair a sua própria borracha, matéria-prima imprescindível aos carros que fabricava. Para isso, adquiriu um milhão de hectares de terra no Estado do Pará, às margens do rio Tapajós, e iniciou a construção do que ficou conhecido como Fordlândia, hoje duas cidades fantasmas e de difícil acesso: a vegetação invadiu as ruínas dos barracões e das engrenagens de infraestrutura daquela que foi um dia um oásis de desenvolvimento no meio da Floresta Amazônica – ou, segundo alguns técnicos, o embrião da brutal devastação que se seguiria com as grandes “plantations” de soja e outras commodities cultivadas na região. Para o historiador americano Greg Grandin, autor do livro “Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva” (Editora Rocco), não foi apenas o desejo de expansão econômica e geopolítica que moveu o empreendedor Ford. Ele também alimentava a utopia e a onipotência de levar o sonho americano para o meio da floresta e, à sua maneira, fez isso sem nunca pisar o solo amazônico.
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VISIONÁRIO
O empresário Henry Ford: um mundo novo e “utópico” na Amazônia


Em pouco tempo, entre o final da década de 1920 e o início de 1930, estava instalada uma cidade tipicamente americana, com hidrantes a cada esquina, automóveis, geladeiras, casas de madeira e campos de golfe. Nas fábricas e usinas para geração de energia e distribuição de água tratada, funcionários atônitos tentavam se habituar às novas regras que incluíam relógios de ponto, normas de higiene e restrição ao consumo de álcool. No Hemisfério Norte, a iniciativa do empresário causava certo alarde. “Henry Ford transplantou grande parte da civilização do século XX para a Amazônia, trazendo para os nativos uma prosperidade que nunca haviam experimentado”, registrou um jornal da época. “Ford irá governar no Brasil uma plantação de seringueiras maior que o Estado da Carolina do Norte”, escreveu em editorial o “Washington Post”. As dificuldades culturais, no entanto, eram muitas, já que tudo contrariava o ritmo de vida no Tapajós, “onde a pressa era considerada uma palavra obscena”, como dizia o administrador americano em Fordlândia, David Rilker.
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CIVILIZAÇÃO
Detalhe do sistema de turbinas adaptado de navios da Marinha dos EUA: água clorada a todas as residências (abaixo)

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“Os moradores de Fordlândia e de Belterra ainda estão à espera de Henry Ford”
Greg Grandin, historiador americano e autor de “Fordlândia”

 
A empresa exigia que os trabalhadores se submetessem à coleta de sangue, tomassem quinino e quenopódio contra parasitas. E a medicação era administrada regularmente aos funcionários, logo que passavam pelo relógio de ponto ao final do expediente. O autor conta que os trabalhadores escondiam o remédio sob a língua e não o ingeriam. “Os americanos acham que estamos cheios de vermes”, diziam. A resistência foi um motivo crucial para o fracasso da empreitada de Ford, mas a 2ª Guerra Mundial e os altos impostos nunca pagos ao governo pela companhia americana acabaram determinando a venda das cidades ao governo brasileiro, em 1945, pela bagatela de US$ 250 mil, valor muito inferior ao que foi pago 17 anos antes. O autor Grandin esteve duas vezes na região e, exatamente como há oito décadas, são necessárias 18 horas de barco até Fordlândia, viagem que o então presidente Getúlio Vargas fez num avião monomotor em 1930 a fim de conhecer suas modernas instalações. Possuía um reservatório de água com capacidade para 600 mil litros e um sistema de bombeamento que distribuía às residências, às fábricas e às plantações 1,9 mil metros cúbicos de água tratada retirada do rio Tapajós. O historiador revela que os poucos moradores que vivem hoje na região esperam que algum descendente de Ford apareça para uma visita. O vilarejo se tornou ponto turístico para aventureiros está até em guias de viagens. Um deles diz: “A Fordlândia nasceu e morreu esperando uma visita de seu patrono e mantém a melhor casa em permanente estado de prontidão.”


Leia trecho do capítulo 15 do livro “Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva”, de Greg Grandin

MATEM TODOS OS AMERICANOS
Em dezembro de 1930, os trabalhadores terminaram a pintura do logo da Ford no marco que até hoje distingue Fordlândia: sua torre de 50 metros e a cisterna de 570 mil litros. “Quando se olha do convés de um vapor fluvial”, escreveu Ogden Pierrot, adido comercial assistente que servia na embaixada dos EUA no Rio, em sua viagem à Fordlândia, “as imponentes estruturas da seção industrial da cidade, com o tremendo tanque de água e a chaminé da usina de força, atraem os olhos e geram verdadeira admiração.”
Ele prosseguiu:
Isto não é incomum quando se considera que, por vários dias, os únicos sinais de vida que aliviavam a monotonia da viagem eram assentamentos ocasionais consistindo em duas ou três cabanas cobertas de palha contra um fundo de selva verde. Um sentimento semelhante à descrença domina o visitante quando vê de repente, projetado à sua frente, um quadro que pode ser considerado uma miniatura de uma cidade industrial moderna. Chaminés expelindo uma pesada nuvem formada por restos de madeira usados como combustível, uma locomotiva fumegante à frente de vagões carregados de maquinário acabado de chegar dos Estados Unidos, guindastes executando suas voltas infindáveis para retirar cargas pesadas de balsas atracadas na longa doca, tratores pesados se arrastando pelos morros implementos para soltar e nivelar a terra, outros puxando cabos esticados presos a troncos de tremendas proporções
– tudo se combina e aumenta o espanto causado nos visitantes que desconhecem este distrito, que não tinham ideia do que foi realizado no breve espaço de pouco mais de dois anos.
Grande parte da tubulação que forneceria água encanada à cidade estava com sua conclusão programada para o ano seguinte. Mas, com a aproximação do Natal, os trabalhadores aparafusaram à torre um item que nada tinha a ver com água.
Os compradores de Dearborn tiveram algum trabalho para encontrar um apito de fábrica que não enferrujasse com a umidade da selva. Quando encontraram, enviaram-no à Fordlândia, onde foi instalado no alto da torre de água, acima das árvores altas, dando-lhe um alcance de mais de 11 quilômetros. O apito era agudo o suficiente não só para alcançar grupos dispersos no campo, mas também para ser ouvido no outro lado do rio, onde até mesmo as pessoas não ligadas à Fordlândia começaram a medir seus dias por seus toques regulares. O apito era suplementado por outro ícone do trabalho industrial nas fábricas: relógios de ponto, colocados em diferentes locais pela plantação, que registravam exatamente quando cada funcionário iniciava e terminava seu dia de trabalho.
Em Detroit, os trabalhadores imigrantes, mesmo que fossem camponeses e pastores, tiveram uma ampla oportunidade de se adaptarem ao medidor da vida industrial ao chegarem às fábricas da Ford. As longas filas em Ellis Island, os relógios pendurados nas paredes de depósitos e salas de espera, os horários relativamente precisos de navios e trens e o tempo padronizado dividiam o arco diário do sol em zonas combinadas para orientar seus movimentos e mudar seu senso interior de como os dias se passavam.
Mas na Amazônia a transição entre tempo agrícola e tempo industrial era muito mais súbita. Antes de chegar à Fordlândia, muitos trabalhadores da plantação que haviam vivido na região fixaram seu ritmo por dois relógios distintos, mas complementares. O primeiro era o sol, com sua ascensão e queda marcando o início e o fim do dia, seu ápice sinalizando a hora de ir para a sombra e dormir. O segundo era a alternância das estações: a maior parte do trabalho necessário à sobrevivência era feita durante os meses relativamente secos de junho a novembro. Os dias sem chuva possibilitavam a extração do látex, enquanto a recessão das enchentes expunha solos recémenriquecidos, prontos para o plantio, e concentrava os peixes, tornando sua pesca mais fácil. Mas nada estava escrito em pedra. Chuva excessiva ou períodos prolongados de seca ou calor levavam a ajustes nas programações.
Antes da vinda da Ford, os trabalhadores do Tapajós viviam o tempo, não o mediam – em sua maioria, nunca ouviram sinos de igreja e muito menos um apito de fábrica. Portanto era difícil, como disse David Riker, que executava muitos trabalhos para a Ford, inclusive recrutamento de mão de obra, “transformar essas pessoas em máquinas de 365 dias”.
Já os gerentes e supervisores da Fordlândia eram em sua maioria engenheiros, precisos na medição de tempos e movimentos. Uma das primeiras coisas que os americanos fizeram foi acertar seus relógios ao horário de Detroit, no qual a Fordlândia permanece até hoje (em Santarém, nas proximidades, é uma hora mais cedo).* Eles coçavam a cabeça quando se confrontavam com trabalhadores que rotineiramente descreviam como “preguiçosos”. A filha de Archie Weeks se lembra de seu pai jogando o chapéu de palha no chão mais de uma vez em sinal de frustração. Com um decidido senso de propósito que contrariava os ritmos da vida no Tapajós (David Riker costumava dizer que no vale pressa era uma palavra “obscena”), orgulhosamente ligados a uma empresa conhecida por sua eficiência integrada de vanguarda, os homens da Ford tendiam a tratar os brasileiros como instrumentos, chamando-os por esse nome. Matt Mulrooney dava apelidos aos seus homens. “Este sujeito eu chamei de Telefone. Quando queria enviar uma mensagem ou uma ordem lá para a frente, eu apenas gritava ‘Telefone!’ e ele aparecia.”
E eles usavam a si mesmos como padrões para medir o valor dos trabalhadores brasileiros. “Dois dos nossos carregaram facilmente alguns troncos que doze brasileiros não pareciam capazes de aguentar”, observou um funcionário de Dearborn no final de 1930. Aquilo que um homem podia fazer em um dia em Dearborn “levaria três dias para ser feito por alguém daqui”.

* O Brasil resistiu por mais de uma década a um acordo internacional que fixaria o meridiano de Greenwich como base para o reconhecimento das zonas internacionais, preferindo usar suas próprias coordenadas para padronizar o tempo. O país mudou sua posição em 1913 e aceitou a hora de Greenwich, embora a maior parte das regiões do interior, em especial aquelas sem ferrovias como a Amazônia, tenha continuado a manter o “tempo de Deus”.
 
Fonte: www.istoe.com.br

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