Uma boa livraria é um ecossistema delicado. Para que dê certo não basta juntar um monte de livros; é preciso saber dosar a mistura, acrescentando ao óbvio maravilhas inesperadas, extravagâncias que ninguém tem dinheiro para comprar mas todos adoram folhear, miudezas simpáticas, descobertas especiais. Pode-se abrir um pequeno café nos fundos, um barzinho, um restaurante; pode-se, ainda, juntar algumas poltronas e enfeites a gosto -- mas tudo isso é acessório. O segredo está mesmo na seleção e na exposição dos livros. A Livraria da Travessa, a Da Conde e a Argumento, por exemplo, para ficar só no Leblon, vendem quase as mesmas coisas – mas que diferença faz este “quase”! As três não poderiam ter personalidades mais distintas.
O que faz a delícia de quem ama livrarias é curtir as suas idiossincrasias e especialidades -- e se familiarizar de tal forma com a disposição dos livros que consiga até achar o que não está procurando. Há duas semanas, escrevi sobre um delicioso livrinho chamado “Hotel Yoga”, que descobri na Travessa. Pois “descobrir” é o verbo certo: o coitado não é best-seller, não saiu por nenhuma grande editora, não teve uma linha de publicidade em lugar algum. Eu sequer sabia da sua existência!
Ora, o que permite toda essa bibliodiversidade não é, evidentemente, a venda dos “Hotel Yoga” da vida, mas a dos best-sellers. Os livros que permanecem indefinidamente na lista de mais vendidos são o motor do mercado: saem sozinhos, aos montes, e com isso permitem aos livreiros o luxo de manter em estoque não só aqueles deslumbrantes livros de arte que folheamos platonicamente, como todo o rico caldo de cultura formado pelos clássicos, pela poesia, por livros menos conhecidos mas nem por isso menos interessantes. Em suma, o vasto conjunto que dá a cada livraria o seu jeito particular de ser, já que a massa uniforme dos best-sellers encontra-se até no supermercado.
Pois aí está, justamente, uma das grandes ameaças ao meio-ambiente livreiro. Um caso recente e exemplar é o do formidável “1808”, de Laurentino Gomes, que custa cerca de R$ 40, e que passou o carnaval a R$ 9,90 num empório online. Parece ótimo negócio para o consumidor, e é mesmo, mas apenas a curtíssimo prazo. “1808” é vendido às livrarias por cerca de R$ 25. Com o lucro da venda de um único home theater o tal empório recupera o prejuízo e segue feliz. Já a livraria, que não vende nada além de livros, está frita: ninguém precisa ter PhD em economia para saber que vender a R$ 9,90 algo que se comprou a R$ 25 é péssimo negócio.
Tá, dirão vocês, e nós com isso? Quem é o idiota que vai dar R$ 40 por um livro que pode comprar a R$ 9,90? As livrarias que se virem! É verdade. Só que, não tendo como se virar, as livrarias vão mudar de ramo. Vão passar a vender yogoberry, lingerie ou celulares. Problema das livrarias, certo? Errado: os livros que vendem pouco e que precisam das livrarias para alcançar o público raramente chegam às megastores -- se é que chegam. E como o mercado é feito de reações em cadeia, as pequenas editoras que os publicam, e que muitas vezes têm a audácia e o jogo de cintura que as grande já perderam, vão ficando pelo caminho.
Por mais que eu não resista a uma boa oferta e adore comprar pela internet, tenho calafrios ao imaginar um mundo sem livrarias, ou um mundo de livrarias de best-sellers, todas igualmente destituídas de personalidade, como as livrarias de aeroporto. Brrrrrrrrrr!!!
* * *
Conversando com amigos livreiros, descobri que esse caso do “1808” pode ser ainda mais perverso do que eu imaginava. Aparentemente, há editoras que vendem lotes de livros abaixo do preço para conquistar a boa vontade de mega vendedores para futuras encomendas. Se assim é, estamos não só diante de uma bizarra prática de autodumping, mas de um tiro no pé potencialmente suicida. A memória de um país, a sua força intelectual e a sua cultura literária dependem da diversidade do encontro entre livros e leitores. Uma editora que acha que pode ficar de fora dessa equação só pode estar maluca.
Há saída para isso? Os livreiros defendem a fixação do preço dos livros, para evitar a concorrência desleal de quem não precisa da sua venda para sobreviver, até porque os benefícios de uma política de preços predatória são bastante questionáveis. Uma editora que vende a R$ 6 um best-seller pelo qual habitualmente cobra R$ 25 vai buscar a diferença aumentando os preços de seus outros títulos. O que o consumidor economiza num canto, perde no outro. Vários países, entre eles Alemanha e França, vorazes consumidoras de livros e pátrias de encantadoras livrarias, têm trabalhado nessa linha, fazendo leis e acordos bastante positivos.
E faz sentido, a essa altura, lutar contra a força do mercado? Acho que sim: o mercado, como o famoso escorpião da anedota, acaba de mostrar ao mundo a que veio. É possível que, amanhã, a tecnologia mude de tal forma os paradigmas, que livros e livrarias se tornem obsoletos. Até lá, porém, muitos petabytes ainda vão correr pela internet. Por enquanto, as livrarias, assim como a floresta amazônica ou o mico leão dourado, merecem os nossos melhores cuidados e carinhos.
Fonte: Blog da Cora Rónai
(também pulicado em O Globo, Segundo Caderno, 5.3.2008)
O que faz a delícia de quem ama livrarias é curtir as suas idiossincrasias e especialidades -- e se familiarizar de tal forma com a disposição dos livros que consiga até achar o que não está procurando. Há duas semanas, escrevi sobre um delicioso livrinho chamado “Hotel Yoga”, que descobri na Travessa. Pois “descobrir” é o verbo certo: o coitado não é best-seller, não saiu por nenhuma grande editora, não teve uma linha de publicidade em lugar algum. Eu sequer sabia da sua existência!
Ora, o que permite toda essa bibliodiversidade não é, evidentemente, a venda dos “Hotel Yoga” da vida, mas a dos best-sellers. Os livros que permanecem indefinidamente na lista de mais vendidos são o motor do mercado: saem sozinhos, aos montes, e com isso permitem aos livreiros o luxo de manter em estoque não só aqueles deslumbrantes livros de arte que folheamos platonicamente, como todo o rico caldo de cultura formado pelos clássicos, pela poesia, por livros menos conhecidos mas nem por isso menos interessantes. Em suma, o vasto conjunto que dá a cada livraria o seu jeito particular de ser, já que a massa uniforme dos best-sellers encontra-se até no supermercado.
Pois aí está, justamente, uma das grandes ameaças ao meio-ambiente livreiro. Um caso recente e exemplar é o do formidável “1808”, de Laurentino Gomes, que custa cerca de R$ 40, e que passou o carnaval a R$ 9,90 num empório online. Parece ótimo negócio para o consumidor, e é mesmo, mas apenas a curtíssimo prazo. “1808” é vendido às livrarias por cerca de R$ 25. Com o lucro da venda de um único home theater o tal empório recupera o prejuízo e segue feliz. Já a livraria, que não vende nada além de livros, está frita: ninguém precisa ter PhD em economia para saber que vender a R$ 9,90 algo que se comprou a R$ 25 é péssimo negócio.
Tá, dirão vocês, e nós com isso? Quem é o idiota que vai dar R$ 40 por um livro que pode comprar a R$ 9,90? As livrarias que se virem! É verdade. Só que, não tendo como se virar, as livrarias vão mudar de ramo. Vão passar a vender yogoberry, lingerie ou celulares. Problema das livrarias, certo? Errado: os livros que vendem pouco e que precisam das livrarias para alcançar o público raramente chegam às megastores -- se é que chegam. E como o mercado é feito de reações em cadeia, as pequenas editoras que os publicam, e que muitas vezes têm a audácia e o jogo de cintura que as grande já perderam, vão ficando pelo caminho.
Por mais que eu não resista a uma boa oferta e adore comprar pela internet, tenho calafrios ao imaginar um mundo sem livrarias, ou um mundo de livrarias de best-sellers, todas igualmente destituídas de personalidade, como as livrarias de aeroporto. Brrrrrrrrrr!!!
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Conversando com amigos livreiros, descobri que esse caso do “1808” pode ser ainda mais perverso do que eu imaginava. Aparentemente, há editoras que vendem lotes de livros abaixo do preço para conquistar a boa vontade de mega vendedores para futuras encomendas. Se assim é, estamos não só diante de uma bizarra prática de autodumping, mas de um tiro no pé potencialmente suicida. A memória de um país, a sua força intelectual e a sua cultura literária dependem da diversidade do encontro entre livros e leitores. Uma editora que acha que pode ficar de fora dessa equação só pode estar maluca.
Há saída para isso? Os livreiros defendem a fixação do preço dos livros, para evitar a concorrência desleal de quem não precisa da sua venda para sobreviver, até porque os benefícios de uma política de preços predatória são bastante questionáveis. Uma editora que vende a R$ 6 um best-seller pelo qual habitualmente cobra R$ 25 vai buscar a diferença aumentando os preços de seus outros títulos. O que o consumidor economiza num canto, perde no outro. Vários países, entre eles Alemanha e França, vorazes consumidoras de livros e pátrias de encantadoras livrarias, têm trabalhado nessa linha, fazendo leis e acordos bastante positivos.
E faz sentido, a essa altura, lutar contra a força do mercado? Acho que sim: o mercado, como o famoso escorpião da anedota, acaba de mostrar ao mundo a que veio. É possível que, amanhã, a tecnologia mude de tal forma os paradigmas, que livros e livrarias se tornem obsoletos. Até lá, porém, muitos petabytes ainda vão correr pela internet. Por enquanto, as livrarias, assim como a floresta amazônica ou o mico leão dourado, merecem os nossos melhores cuidados e carinhos.
Fonte: Blog da Cora Rónai
(também pulicado em O Globo, Segundo Caderno, 5.3.2008)